Com o coração novamente no peito: de volta a Portugal

Já estou de regresso depois de uma longa estadia em Moçambique. A verdade é que me fartei de ouvir dizer que fui por muito pouco tempo, mas para o meu coração de mãe, foi imenso. Foram treze dias, contando com as viagens. E desde dia 13 deste mês que estou novamente com o meu coração no lugar. E cheio, a transbordar com tudo o que de lá trouxe.

Viajar é realmente uma necessidade. Na sociedade de informação que vivemos, é muito difícil conseguir perceber qual é exactamente a realidade de um determinado país ou de um povo, porque o que chega aos nossos olhos e ouvidos passou por uma série de filtros. Para os adultos de amanhã, é essencial a experiência da viagem. Especialmente para perceber que o mundo vai muito para além da televisão, do facebook, do youtube e do disney channel, mesmo com todas as realidades aumentadas que forem sendo acrescentadas. Se a realidade é dura? Um bocado, e confesso que nos onze dias completos que passei em Moçambique levei vários murros no estômago. 

O país e a cidade de Maputo é cenário da minha história familiar. A distância é enorme e o país é imenso. Fui pela TAP, num fantástico Airbus A340 com uns touchscreens individuais girérrimos, que ia consultando amiúde para saber onde estava no mundo. Adoro geekisses, já tinha dito aqui.
O meu ecrã, que entre episódios de Big Bang Theory e de filmes como a Wonder Woman, me foi dizendo onde estava. Noite em Portugal, dia em Moçambique. (Foto Sílvia R. 02/11/2017)

Confesso que desde que entrei em espaço aéreo moçambicano até aterrar, para mim passou uma eternidade. Que país enorme. Quando o avião começou a descer e a minha janela me mostrou um oceano de caniços (slums) pensei que ia mergulhar noutra realidade. A ver.

Desde que se mudaram para Moçambique os meus pais já passaram por várias moradas, desde Maputo até Tete. Actualmente residem na cidade da Matola, numa casa simples e honesta, com um jardim onde os espinafres e as couves teimam em crescer a olhos vistos. Do outro lado do muro electrificado as mangueiras carregadas de mangas verdes fizeram-me sempre crer que estava realmente noutro país e noutro continente. Fiquei a saber logo no caminho para a Matola que a cidade estava muito mais limpa do que é costume: junto aos passeios das largas avenidas ladeadas pelos prédios sobreviventes à guerra civil, (todos!) perfeitamente habitáveis mas a precisar de uma cara lavada, não havia sinais dos tais amontoados de lixo de que tanto ouvi falar e li. 
Av. Eduardo Mondlane (Foto Sílvia R. 09/11/2017)

Dois dias depois de aterrar já estava outra vez em viagem (de carro...) com destino à Namaacha, uma das várias moradas dos meus pais nos últimos tempos. Afinal de contas, fui por pouco tempo e não havia tempo a perder.

Tenho perguntado ao Dr. Google quais os países com feriados dedicados às mulheres (no geral e não no particular), mas ele teima sempre em me dar respostas evasivas... Enfim... Moçambique comemora a 7 de Abril o Dia da Mulher Moçambicana e é para vergonha de muitos outros países, feriado nacional. É pura presunção minha escrever uma coisa destas (eu sei!) porque a segurança, o acesso à educação e a igualdade de género naquele país não tem ponta por onde se lhe pegue comparada com a nossa realidade na Europa. Mas a mulher moçambicana tem um feriado só dela! Nós cá vamo-nos contentando com o Dia da Mãe (not!) e com o Dia Internacional da Mulher (not!) que nem feriados são. O Dia da Mulher Moçambicana celebra-se no aniversário da morte de Josina Machel, segunda mulher de Samora Machel, que foi aproveitado para celebrar as mulheres daquele país (para mais informações a Wikipedia e o Dr. Google podem ajudar). E aonde é que eu fui passar uns dias na Namaacha?! No Colégio Maria Auxiliadora, escola salesiana dirigida por mulheres, com o objectivo de proteger e educar as mulheres moçambicanas do amanhã. Porque apesar do feriado, ainda há um longo caminho a percorrer.
Eu na entrada do colégio Maria Auxiliadora (Foto Sílvia R. 05/11/2017)

A Namaacha é uma terra linda, onde o chão é vermelho laranja e cujas cascatas são lendárias. Quase lendas, porque as nossas asneiras ambientais não andam só a secar os rios Douro e Tejo... Em todo o caso, é da Namaacha que sai a água que depois de engarrafada se vende em qualquer lado nas três províncias por onde passei: Maputo, Gaza e Inhambane. No caminho da Matola para a Namaacha, à medida que se vai saindo da cidade, vão emergindo no meio do mato esqueletos de casas abandonadas, restos do processo de descolonização e consequente guerra civil, cuja configuração qualquer arquitecto doutorado Google diria de "traça portuguesa". Ninguém se aproxima delas, não deita abaixo, nem reabilita: há quem acredite que os espíritos dos que lá foram mortos, ainda andam lá a rondar. Momento murro no estômago.

A família Salesiana faz parte da minha história familiar e individual. Tanto a minha mãe como a minha tia, sua irmã, viveram vários anos como alunas internas exactamente neste colégio depois de ficarem órfãs de mãe. As minhas primas que vivem actualmente em Barcelona são ambas antigas alunas salesianas e eu também fiz sete dos doze anos de escolaridade obrigatória numa escola salesiana. Portanto, vivências religiosas à parte, a família Salesiana faz parte do meu universo educativo e foi com muita alegria, orgulho e gratidão que pisei o chão deste colégio. Independentemente das diferenças abismais entre a realidade social de quem frequentou o colégio na década de 60 do século passado e de quem lá vive agora, as irmãs cumprem o seu papel educativo e social exactamente com o mesmo afinco e brio com que sempre o fizeram neste lugar. E para mim, ver o colégio a funcionar, com aquele bando de meninas internas a dar gargalhadas e a fazer traquinices dignas de crianças felizes e protegidas foi muito emocionante. Só esta placa me fez levar outro murro no estômago:
Após o fim da guerra civil o colégio passou por um período de reconstrução e a sua gestão foi devolvida às irmãs salesianas, Filhas de Maria Auxiliadora. (Foto Sílvia R. 05/11/2017)

O colégio é A casa para muitas meninas. As mais velhas contaram-me que são de toda a parte de Moçambique. Seja por morte, doença ou abandono, muitas delas têm aqui uma família e a segurança que lhes foi roubada. E principalmente têm acesso à educação, que isso os salesianos em todo o mundo não descuram. Não há nada que lhes falte, apenas um bocadinho de amor. É preciso colo, é preciso contacto humano e os adultos daquela escola e mesmo os voluntários que por lá vão passando não conseguem desdobrar-se para acudir a todas as necessidades, especialmente as emocionais. O dia-a-dia e as rotinas de uma organização deste tamanho e com estas necessidades, nem sempre dão muito espaço nem tempo aos adultos para "estarem" com as meninas. E as consequências desta realidade inevitável infelizmente são mais que previsíveis. 
No pouco tempo que lá estive, confesso que me afeiçoei a uma pequenina surda, de idade indefinida. Umas pestanas e um olhar do tamanho do mundo. E o sorriso das minhas ML e J. Andou comigo pela mão a brincar e a saltar, como se o mundo fosse perfeito e fácil e as distâncias fossem pequenas. Antes de me vir embora deu-me um desenho. E aí eu percebi que apesar do tremendo desafio emocional que é estar com estas crianças, elas conseguem sempre ultrapassar em tamanho e valor o que quer que seja que lhes seja dado por nós.
Ao fundo: traseiras de um dos edifícios principais onde funcionam as camaratas, o refeitório e algumas das salas de aulas. Em primeiro plano: a horta que alimenta parcialmente o colégio. (Foto Sílvia R. 04/11/2017)

A escola infantil, que não tive oportunidade de ver a funcionar, uma vez que visitei o colégio durante o fim de semana. (Foto Sílvia R. 04/11/2017)
Depois de um curto regresso à cidade da Matola, lá fomos nós aproveitar o tempo (que eu obriguei a ser escasso, por "Só" lá estar onze dias) até Inharrime. Aí fiquei a conhecer mais outro diamante da humanidade no universo feminino moçambicano: a escola e centro Laura Vicunha. 
Os depósitos de água e a identificação do centro Laura Vicunha (Foto Sílvia R. 07/11/2017)

A viagem fez-se ao longo de um dia enorme, com um desvio até ao Chokwé, antiga Vila Trigo de Morais e com um valente murro no estômago provavelmente com direito a artigo dedicado. Depois do desgaste de centenas de quilómetros da famosa estrada nacional 1, lá nos valeu o Google Maps, o download antecipado do mapa e o GPS do telemóvel. E obviamente a coragem interminável dos meus pais, um a conduzir e outro a persistir.

Chegámos à noite ao colégio. A refeição quente e a cama com a rede mosquiteira souberam-me a Céu. Só no dia seguinte é que me apercebi realmente de onde é que eu estava. Se eu já tinha ficado maravilhada com o colégio "Maria Auxiliadora", aqui a realidade ainda era mais avassaladora. Dia 7 de novembro, terça feira, a escola estava toda a funcionar numa paz indescritível. Ao contrário de Portugal, o ano lectivo está prestes a terminar e as meninas internas estavam concentradíssimas a estudar. Ao jantar do dia anterior, logo após a nossa chegada tinha conhecido um bando fantástico de super-heróis voluntários da Associação Amigos de Inharrime. Alguns por mais, outros por menos tempo, vão dedicar o bem mais precioso que têm a quem dá muito mais do que recebe. Era tão fácil se toda a humanidade funcionasse assim, não era? Pois bem, naquela manhã consegui perceber que um par de voluntários ia tratar das colmeias das abelhas durante todo o dia; uma voluntária (super fashion) ia comprar tinta para pintar a fábrica de arroz (centenas de litros!); À saída passámos pela padaria onde estava outra voluntária a fazer o atendimento ao público, que também vai ficar nesta coisa do voluntariado por um ano. Resultado, se eu achava a Namaacha o máximo, aqui fiquei maravilhada com este cantinho da humanidade, não só por quem cá vive e estuda, mas também por quem cá faz voluntariado. A paz, a serenidade, o ambiente positivo e de estudo, a alegria e a simplicidade desarmam qualquer um. O irmã Lucília foi-me mostrar a imensidão do colégio, as camaratas, a escola externa, o anfiteatro ao ar livre, o campo de jogos e mais uma vez eu percebi que algo transcendente pura e simplesmente existe ali. Foi-me contando como com tão pouco, se faz tanto. E dois dias depois quando me vim embora trouxe muito mais do que lá deixei. Enfim, se pensarem que mesmo à distância podem de alguma forma contribuir, sigam-nos no facebook aqui e participem nas actividades ou quem sabe preparem-se para um voluntariado que vos irá mudar a vida.
Escola Secundária Geral Comunitária Laura Vicuña | Centro de Crianças Orfãs Filhas de Maria Auxiliadora
(Foto Sílvia R. 08/11/2017)
E sim, por fim a descrição dos últimos murros no estômago deste primeiro artigo dedicado à minha viagem a Moçambique. A caminho de Inharrime e ainda com a luz do dia, passaram por nós pela beira da estrada, grupos de crianças com fardas azuis e mochilas às costas a pé a caminho de casa. Vários quilómetros depois chegámos ao colégio, já era noite serrada. No dia seguinte muitas daquelas crianças regressaram a pé para a escola, numa rotina diária rumo à educação e à esperança num futuro melhor. Os perigos e a miséria humana que as espreita nesse caminho ficou para sempre associado na minha memória à última camarata que visitei com a irmã Lucília: algumas dezenas de jovens adolescentes têm refúgio numa zona do colégio, onde a construção de algumas paredes foi habilmente substituída por antigos contentores. Elas só querem estudar, mas o caminho para a escola esconde uma violência atroz que só as paredes sustentadas com os contentores as protegem; as paredes, a educação dada pela família salesiana e a entrega dos voluntários e da sua associação.

Uma ressalva: não quero deixar de dizer que tenho conhecimento de outras ONGs que também fazem um trabalho extraordinário no terreno. Mas a estes levo-os agora no meu coração, que voltou ao meu peito.


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