Os palpites dos outros

Há quase um mês que ando a tentar alinhar umas ideias sobre os palpites dos outros e confesso que não tem sido fácil.

A vida profissional voltou a engolir-me e eu tive de me içar cá para fora. Tipo anémonas-do-mar e peixes; inicialmente parece que eu sou um peixe-palhaço, mas afinal não e blup! Quase desapareço!  

Não consigo criar distâncias e proteger-me de todos os jogos psicológicos "dos outros" e não sou pessoa de me impor "aos outros". Tenho a perfeita noção que choco "os outros" com quem crio relações pessoais quando decido sair. Sabem aquelas figurinhas da nossa consciência, o diabinho e o anjinho, cada um com título de propriedade de um dos nossos ouvidos? Pois, o meu diabinho ao fim dos dias vai dizendo "- Estás a ver, mais um dia que deste mais do que devias!" E a disponibilidade mental ou mesmo de calendário para a família lá se vai esfumando, nos compromissos profissionais. Eu encarno aquela figurinha chata dos escritórios que tem sempre o palpite certo para os problemas dos outros, que tem sempre alguma coisa para dizer em todos os briefings diários e que está sempre com um nível de energia muito acima do legal mas que ainda se encharca em cafés ao longo do dia. E vou me esgotando com questões cuja resolução foge muito ao meu alcance.
Quase como que num achaque de gaja histérica há três dias virei-me para o lado e disse: "- Vou-me embora." E vim. Como escrevi neste blog anteriormente, não me identifico em nada com o discurso das vítimas dos recibos verdes e dos vínculos profissionais precários. É precário para ambos os lados, e portanto o poder da rescisão é mútua e imediata.

Já tinha feito o mesmo na minha vida académica, num passado não muito distante. É peculiar como ambas as histórias têm contextos muito semelhantes: um telefonema demorado e um pensamento relâmpago: "(...) mas porque raio é que continuo a mentir e a enganar-me? Aos outros e a mim própria!?" Há pouco mais de uma semana tive uma conversa super-animada com uma grande amiga, ao telefone, sobre o meu mais recente trabalho, o que estava a fazer e como tinha tudo a haver comigo...
Ups: não tem, não. 
Fui.

Há 18 anos estava eu super comprometida com a licenciatura dos sonhos de toda a minha adolescência e no segundo semestre do segundo ano passava horas todos os dias ao telefone a falar com um distraído e seguidor de borboletas (e de pássaros) como eu... falávamos essencialmente da felicidade que era estudarmos a área que estudávamos. Wrong! Lembro-me claramente de depois de um desses telefonemas ligar logo a seguir à minha mãe, comunicar-lhe a minha decisão e ela quase ter um colapso. Mas como?! Com todas as disciplinas de Análise Matemática e Química Orgânica feitas e queres desistir?! Havia veterenos com essas disciplinas penduradas, que raio?! Pois, fui. E foi um drama e um infinito de palpites dos outros. Até a minha mãe teve de ouvir palpites de uns quantos frustrados da vida que aparentemente não têm mais nada que fazer do que cagar sentenças sobre a vida e os filhos dos outros. 

Agora, quase nos quarenta, a permeabilidade aos palpites dos outros é diferente. Pelo menos sei exactamente o que não quero fazer. Podem dizer-me que tenho a capacidade de impingir gelo a esquimós, que dificilmente me farão convencer a voltar a fazer vendas. À partida estaria no sítio certo, porque os fechos das vendas não eram da minha responsabilidade. Mas não. Não é a minha praia. Estou muito agradecida pelo que aprendi e pelo que me foi proporcionado; as relações pessoais que criei são o que de mais importante levo dos últimos nove meses. E visto desta perspectiva, fiquei a ganhar. Nove meses :) parece que pari um filho! Talvez tenha parido uma nova Sílvia, quem sabe.

Da tal licenciatura, ficou essencialmente a experiência contrastante com a que realmente terminei e a experiência académica com a qual cresci e amadureci em Lisboa. Não poderia estar mais grata tanto por uma como pela outra, mas o curso universitário que me fez ser quem sou hoje foi obviamente o segundo, que conclui e que me deu armas e bagagem tanto para a minha vida profissional como para a pessoal. O homem da minha vida e pai das minhas filhas surgiu neste segundo contexto académico.

Gostava de terminar este texto com uma receita mágica contra os palpites dos outros, fazendo de mim uma candidata ao Nobel. Na sua génese, os palpites têm ou a admiração profunda que se esfumaça com o acto desencadeador dos próprios palpites ou a simples preocupação pelo bem estar e a preservação de quem mais se gosta. É óbvio que agora estou a falar dos filhos. No alto da minha capacidade de contrariar os meus próprios pensamentos, sei que serei uma mãe muito palpiteira e que a adolescência das minhas filhas será um inferno, se não controlar os meus impulsos e obviamente os ditos cujos, os palpites. É costume dizer-se que de boas intenções está o inferno cheio; e por trás de um palpite, 99,9% das vezes está uma boa intenção ou até mesmo algum conhecimento de causa e uma preocupação legítima. E nós pais, já trazemos alguma bagagem de experiência de vida - infância, adolescência e início da idade adulta - que nos legitima a capacidade de emitir opiniões sobre TUDO o que nos é alheio na vida dos demais. 
Atrevo-me aqui a abrir um parêntesis. Há uma nuance entre um palpite e um conselho; e essa nuance está sempre muito mais no poder do receptor. A arrogância ou a simplicidade com que o conselho é transmitido e o timing em que é debitado contribui para que o palpite seja considerado ou um acto de amor e o derradeiro contributo para o final feliz de um drama pessoal, ou um vil ataque a uma vítima moribunda ferida no âmago do seu orgulho ou presa no vórtice da sua mais recente crise de auto-estima.

Para terminar aqui fica o meu palpite:
antes de oferecer um palpite ou um conselho a alguém, por muito querido que esse alguém lhe seja, pergunte-lhe apenas se ele quer um café, um chocolate ou apenas um abraço. Se a resposta for nenhum dos dois, então contribua com mais um palpite, no meio de tantos outros. 
E já agora não se armem em virgens ofendidas quando a vida está a ser cabra para esse alguém e aceitem da mesma forma qualquer tipo de reacção, principalmente uma que fique muito aquém do agradecimento profundo como um "vai à merda",  99,99% das vezes mais que provavelmente merecido.
Aqui fica o meu singelo palpite.

Fonte: pixabay.com (CC0 Creative Commons)

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