A paisagem humana do Algarve

Há dias fiquei horrorizada com um artigo que me entrou pelo feed do facebook adentro intitulado "Conheça destinos de sonho onde a vida é barata". Dei por mim a pensar na pequena e gigantesca humanidade que constitui o Algarve; no que eu achava que sabia sobre quem cá vive, sobre o que me diziam dos "verdadeiros" algarvios e sobre as minhas ilusões. E cheguei à conclusão que nunca me passou pelas mãos nenhuma leitura que faça jus a esta paisagem humana única.

"Não há ponta por onde se pegue nisto" - gritou-me o meu espírito crítico. Li uma salgalhada mal amanhada sobre uns países enormes aonde somos convidados a viver como uns reis, à custa da exploração da indústria do turismo e da vida miserável dos locais. Atenção: o turismo é a minha praia profissional! E sim, vivo numa antiga aldeia piscatória, agora cidade de duas avenidas de prédios de dezenas de andares, limitada por resorts de luxo. Claro que gostaria de ir a Marrocos, à Índia e a outros países lindíssimos. Aliás, estamos ávidos de viagens e de férias em família. Mas, queremos ir a terras proibidas pelo parco recheio da nossa carteira e onde os 30€ por pessoa num quarto de hotel de quatro estrelas em Cartagena, pagam um pingo de água da torneira do WC dos espaços comuns. Sabem se alguém já escreveu um artigo intitulado "Conheça os destinos que não estão ao alcance da sua carteira"?

Pequena chamada de atenção: o reino dos Algarves não figura no dito artigo idiota, vai se lá saber porquê...

Eu acho que há muita confusão sobre o Algarve e a sua paisagem. De certeza que há quem ache que é um destino super barato: basta conseguir alugar um T1 e meter lá os oito elementos da família, um cão e atestar a bagageira com a mercearia essencial para a praia, antes de partir para férias; Espeta-se o chapéu de sol na areia no dia em que se chega e o dito fica a marcar o território até ao dia de regresso a casa. Muito bem: férias em conta.
Também há quem ache o Algarve super caro: uma qualquer família de oito elementos e um cão que reservou um T1 com o qual esgotou o plafond do cartão de crédito no booking.com; Ir às compras ou jantar no restaurante está completamente fora de questão, porque nem sequer o telemóvel faz chamadas, só recebe. E para quem vive numa cidade de duas avenidas, esta é a paisagem humana algarvia de Junho a Setembro. O areal é engolido por uma humanidade semi-viva, mas na verdade ele (o areal) só lá está realmente de Setembro a Junho do ano seguinte; tipo São Tomé: ver para crer. Experimentem lá vir ver as praias de Quarteira nesta altura, a areia é real, existe mesmo!

O problema aqui exposto é que o ano tem 365 dias e toda a gente tem direito a viver e a ser feliz. E nós por cá, temos sol, praia e luz quanto baste para afugentar a depressão, qual feitiço patronos contra os devoradores de morte... Mas não, nesta pequena cidade que era uma aldeia piscatória, a depressão apalpa-se no ar. Então indo ali para a capital de concelho, é uma tristeza, é quase contagioso! Faz-se lá um Carnaval com pompa e circunstância que já teve melhores dias; mas de Setembro a Junho não temos as famílias de oito elementos a quem arrendar o T1, para nos ajudar a pagar as contas. Em vez disso, temos um exército de gente trabalhadora e resiliente, sem trabalho nove meses por ano, tida por muitos como preguiçosa. Eu própria do alto da minha presunção quando para cá vim, bradava aos céus como é que era possível não haver uma pastelaria aberta às 7h, porque eu em Sintra apanhava o comboio a essa hora e o quiosque da estação já estava a servir cafés e torradas... Saloia de Sintra, pfffffff... A dura realidade é esta: a falta de dinheiro e de emprego é tanta, que nem vale a pena pensar em cafés abertos a partir das 6h30. 
(Eles têm de existir em algumas cidades algarvias, ainda tenho essa esperança)

Confesso que tenho uma estranha sensação que ainda me falta conhecer muito Algarve. Tenho várias paixões não correspondidas (!) uma das quais já falei aqui. Algo do meu eu anterior permaneceu com a certeza de que somos muito pequenos. E o Algarve é enorme. Na minha vida profissional passada fui vítima de uma violência tremenda por parte de uma lojista de outro espaço no centro comercial onde estive, que sabendo da natureza do negócio que eu tinha aberto o etiquetou como "mais um espaço para os ingleses, o Algarve está cheio de ingleses, é horrível, os bares só passam música dos ingleses" e eu, na altura grávida de 8 meses, não soube reagir (arrancar-lhe uns quantos cabelos e culpar as hormonas chegou a passar-me pela cabeça). Compensou a boçalidade da alminha, um episódio que ocorreu sete meses mais tarde: entre os locais que frequentavam o meu espaço, pelo menos duas famílias passaram o Natal juntas nesse ano, em vez de sozinhas e isoladas; apesar de nacionalidades distintas partilhavam uma língua, a inglesa. Guardo Albufeira no meu coração, como uma cidade fabulosa e crepitante de vida; cheia de fulgor e interesse por negócios e pessoas sem macaquinhos na cabeça. Mas a minha paixão não foi correspondida. Supostamente, Albufeira é a Meca das férias muito baratas, com os seus hóteis all-included, mas onde o merecido descanso anual e a vida de quem lá vive e trabalha podem ter um sabor muito amargo. E não é referida no tal artigo. Continuo sem perceber porquê.

Num tempo de tanta mesquinhez e medo dos outros - que vêm a fugir à miséria desumana - no Algarve a multiculturalidade já faz parte da paisagem humana como os promontórios de Sagres da paisagem natural. Há algo nas pessoas de cá que é divino. A capacidade de comunicar - muitos aprenderam mais do que uma língua a trabalhar - e de sobreviver ao Inverno são únicas. Confesso que não tenho a certeza onde é que J.K.Rowling viveu (o Google diz que foi no Porto) mas a vida dura do emigrante em Portugal de que ela fala quando lhe perguntam pela sua passagem pelo nosso país encaixa que nem uma luva à grande maioria de quem cá vive, seja migrante oriundo do Reino Unido, ou de Lisboa. Conheço muito poucos "estrangeiros" que vieram para cá viver e que ainda hoje conseguem manter a vida no Algarve das mariscadas, das girls nights out, e do entardecer na espreguiçadeira à beira da infinity pool. Somos todos de cá e esta terra não é nossa. Há uma dicotomia Serra e Mar que nos tira o fôlego. Todas as dificuldades, ausências e desgostos rapidamente são destruídas pelo sol, o mar e a serra. Esta terra ensina-nos a ter uma capacidade de nos reinventarmos que é apaixonante e nos mantém vivos. E nem toda a gente tem estaleca para cá viver.

Não quero com isto dizer que as nossas "misérias" (quais?) têm o que quer que seja a haver com os infortúnios (!) dos vietnamitas ou das mulheres em Marrocos. Mas antes de irem ou virem de férias, pensem na paisagem. Pensem na sustentabilidade. Pensem na responsabilidade para com os outros que vivem e trabalham no vosso destino de férias. É verdade, parece que vivem/vivemos no paraíso. Mas sabem aquela ilha do Lost? Por vezes, mesmo com muita maquiagem cinematrográfica, a ficção aproxima-se demasiado da realidade. Para o bem e para o mal. 

Todos temos direito a ser felizes.



Cabo de São Vicente, Sagres, Portugal. Fonte: pixabay.com (CC0 Public Domain)



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